Na Parte 1 desse artigo, apresentamos os fundamentos do Sistema de Zonas em sua versão mais clássica, isto é, quando aplicado a chapas de filmes negativos preto e branco. Uma característica marcante desses suportes fotográficos era sua grande latitude de exposição, ou seja, sua capacidade de registrar detalhes tanto em sombras densas quanto luzes altas quando essas regiões estavam simultaneamente presentes em uma cena. Para isso, como discutimos, o negativo deveria ser exposto segundo os critérios dessa técnica e, a seguir, revelado de modo a permitir a impressão no papel, com precisão, dos tons de cinza da cena fotografada.
A despeito de ter sido originalmente desenvolvido para filmes preto de branco na forma de chapas, o Sistema de Zonas foi estendido para outros tipos de suportes fotográficos, incluindo rolos de filmes preto e branco, filmes negativos e diapositivos coloridos e, recentemente, sensores eletrônicos em câmeras digitais. Para cada meio fotográfico, ajustes de procedimento foram necessários para respeitar suas características intrínsecas e, notadamente, suas latitudes de exposição. Por exemplo, para o caso de rolos de filmes preto e branco ou coloridos, como todo o rolo deveria ser submetido ao mesmo processo de revelação, perder-se-ia o controle sobre essa etapa importante da técnica, isto é, a revelação dos negativos, haja vista que esses não poderiam mais ser processados individualmente.
No caso de filmes diapositivos, também conhecidos como cromos ou transparências, o procedimento de exposição tem lógica reversa ao caso de filmes negativos, isto é, são as luzes altas da cena que devem ser controladas prioritariamente. Somando-se isso ao fato de esses suportes fotográficos apresentarem, comparativamente, latitudes de exposição muito reduzidas, o controle da exposição das luzes altas é crítico nesse caso. Ansel Adams nos ensinou que, para os cromos, os valores mais críticos para a exposição eram aqueles nas Zonas 6 até 8, sendo essas as áreas onde a localização da exposição inicial deveria ser feita. Em outras palavras, as regiões de luzes altas deveriam ser localizadas entre as Zonas 6 e 8, a depender do assunto fotografado.
Consideremos, agora, o caso da fotografia digital, que ainda estava em fase embrionária quando Ansel Adams nos deixou em 1984. Os sensores eletrônicos, assim como os cromos, são muito susceptíveis à perda de detalhes em regiões de luzes altas em cenas de contraste elevado, sendo esse fenômeno chamado, popularmente, de estouro de luz. Essa característica significa que as luzes altas também devem ter atenção especial na fotografia digital. Além disso, a fotografia digital tem a particularidade de possibilitar o arquivamento da imagem em dois tipos básicos de formatos de arquivos com características bem distintas: um arquivo com uma imagem final pronta para ser exibida ou impressa – o popular JPEG, e um arquivo com os dados de captura integralmente preservados – o conhecido arquivo RAW.
Sem entrar nas particularidades que diferenciam esses dois tipos de arquivamento digital, é relevante para nossa discussão observar que o formato JPEG tem armazenamento de 8 bits por canal de cor, enquanto arquivos RAW podem ter desde 12 até 16 bits de informação por canal de cor, tipicamente. Quanto mais bits, mais informação da cena é armazenada digitalmente, como se, analogamente, tivéssemos à nossa disposição mais palavras para contar uma mesma história. Assim, como resultado, arquivos RAW têm uma latitude de exposição significativamente maior que arquivos JPEG e essa característica, em especial, deve ser bem aproveitada para expor adequadamente o sensor à cena.
Fotografando com câmeras digitais, pode-se escolher priorizar, na exposição, uma região da cena de luminosidade bastante elevada. Por exemplo, regiões com nuvens brancas, areia clara de uma praia, neve num campo ou mesmo quedas d’água, especialmente quando esses assuntos receberem a luz direta do sol, devem receber atenção especial na fotografia digital. A fotometria da cena, realizada em modo pontual, deve priorizar essas regiões mais claras, de modo que, inicialmente, as mesmas sejam localizadas na Zona 5, o que pode ser feito zerando-seo fotômetro para essas regiões. Caso isso seja feito e se nenhuma alteração na fotometria for tomada, as regiões de luzes altas da cena serão registradas com tons de cinza médio, o que, naturalmente, não é desejado. Assim, o fotógrafo deve movê-las para as Zonas 7 ou 8, por exemplo, e isso pode ser feito abrindo-se dois ou três pontos de luz a partir da exposição inicial (localizada, inicialmente, na Zona 5). Dependendo-se do assunto fotografado, pode-se optar por tons mais claros (Zona 8, tendo a neve como exemplo) ou menos claros (Zona 7, tendo a areia de uma praia como exemplo), procurando sempre resguardar os detalhes presentes nessas regiões.
Nos exemplos acima, as regiões mais escuras da cena cairiam nas demais zonas do sistema e pode-se tentar resgatar seus detalhes durante a edição do arquivo digital, especialmente se o formato RAW for escolhido pelo fotógrafo. É claro que, se a cena apresentar um contraste elevado demais, de modo que ultrapasse a latitude de exposição do par sensor eletrônico/arquivo digital, é possível que regiões de sombras sejam registradas sem textura alguma e, assim, se tornem irrecuperáveis durante a edição do arquivo. De todo modo, o mantra para a exposição digital pode ser assim colocado: expor para as luzes altas e “revelar“ (isto é, processar o arquivo digital) para as sombras.
A fotografia digital permite que as decisões sobre a fotometria da cena sejam analisadas instantaneamente quando uma fotografia é realizada, ou até mesmo antes de sua realização, através da utilização de histogramas de distribuição dos tons de cada pixel do sensor eletrônico, presentes em virtualmente qualquer câmera digital hoje em dia. A curva do histograma permite que o fotógrafo avalie se, em alguma região da cena, houve perda de detalhes, seja por apresentar sombras muito profundas (nesse caso, a curva do histograma pode tocar no lado esquerdo do gráfico) ou por apresentar luminosidade bastante elevada (nesse caso, a curva pode tocar no lado direito). Um histograma genérico é apresentado na Figura 1.
Histogramas individuais, fornecidos para cada canal de cor, também estão disponíveis para o fotógrafo digital, na própria câmera. Em softwares de edição de imagens, um histograma de luminosidadetambém pode ser gerado, sendo que esse tipo, diferentemente do histograma RGB, realiza uma média da informação de luz armazenada em cada pixel (assim, um estouro de branco pode apenas acontecer se, simultaneamente, os três canais de cor estourarem). Para o caso da captura em JPEG, o valor máximo de luminosidade indicado no histograma é 255 – assim, temos 256 tons de cinza desde o preto até o branco puros. Há mais níveis de tonalidades de cinza no caso do formato RAW mas, por convenção, o valor máximo de 255 também é usado no gráfico.
A filosofiado Sistema de Zonas pode ser acomodada facilmente num fluxo de trabalho que inclua a análise da exposição fotográfica através da utilização de histogramas. Por qualquer método de fotometria e decisão de parâmetros de exposição que o fotógrafo use, essa análise pode ser realizada de modo a garantir que as luzes altas sejam preservadas, resguardando seus detalhes (exceção deve ser feita à eventual presença de regiões da cena apresentando uma fonte luminosa de grande intensidade, como o sol, por exemplo, que resulta inerentemente em alguma perda de detalhe). Situações em que a latitude tonal da cena (também chamada de intervalo dinâmico ou, popularmente, de contraste) supere a latitude de exposição de um sensor eletrônico (também chamada de intervalo dinâmico usável) são casos que podem ser tratados de modo particular e com auxílio de alguma outra técnica fotográfica como, por exemplo, a utilização de filtros de densidade neutra graduados ou a fusão de múltiplas exposições da cena.
A Figura 2 apresenta uma fotografia de paisagem e seu histograma de exposição. O uso do histograma RGB da câmera (direita, acima), combinado com um filtro de densidade neutra graduado, permitiu expor a cena, em campo, com as luzes altas controladas e, ainda assim, reter detalhes nas sombras. O pequeno estouro de luz à direita está relacionado à saturação individual do canal azul, não implicando em estouro do branco. Na edição do arquivo RAW, podemos também ver o histograma de luminosidade (direita, abaixo), indicando que a exposição foi de fato bem controlada durante a execução dessa fotografia, não havendo estouro de branco algum na imagem capturada.
A partir dos ensinamentos que Ansel Adams nos deixou e do rigor com que ele expunha seus negativos à luz, é bastante provável que ele teria apreciado bastante o desenvolvimento e a presença de histogramas em câmeras digitais, bem como a possibilidade, hoje em dia corriqueira, de arquivamento dos dados brutos oriundos da captura da imagem em formato RAW. Ele mesmo chegou a dizer, em um momento visionário, que acreditava que a imagem eletrônica seria o próximo grande avanço. Os histogramas permitem que a filosofia inerente ao Sistema de Zonas, isto é, o controle preciso da exposição da cena, resultando num negativo (no caso digital, num arquivo RAW) que forneça o maior escopo possível para obtenção de uma imagem impressa de elevada qualidade final, à altura da imagem visualizada mentalmente antes mesmo que a câmera sequer seja tocada, possa ser igual e facilmente praticada nos tempos digitais modernos.
Para saber mais:
- Ansel Adams, The Negative, 1981, Little, Brown and Company (há uma edição em Português desse livro, publicada pela editora do Senac).
- Ansel Adams, An Autobiography, 1985, Little, Brown and Company.
- Ansel Adams, Examples – The Making of 40 Photographs, 1983, Little, Brown and Company.
- Michael Frye, Digital Landscape Photography: In the Footsteps of Ansel Adams the Great Masters, 2010, Focal Press.
- John P. Schaefer, The Ansel Adams Guide: Basic Thechniques of Photography (Book 1), 1999, Little, Brown and Company.
- Barbara London, John Upton e Jim Stone, Photography, 10aedição, Pearson.
Texto originalmente publicado em: http://www.photochannel.com.br/index.php/colunistas/ansel-adams-e-o-sistema-de-zonas-pt-1-2/